De ontem e de hoje |Ouvir e contar
por Licínia Quitério
Gosto muito de ouvir contar histórias e tenho a sorte de aparecer de quando em quando uma ou outra pessoa que, a propósito sabe-se lá de quê, começa a contar-me histórias de pessoas que eu nem sequer conheço. Hoje trago aqui um excerto de uma longa conversa sobre ELA, a personagem que assim nomeei, na voz da senhora que ma contou como quem sabe e gosta de contar, pausadamente, com inflexões a propósito, sem exageros, a fazer-me viver a acção, sem se cansar, sem me cansar, suportando alguns apartes meus, com simpatia:
“ELA era muito novinha quando morreu o irmão. A Mãe ficou gravemente doente. Eu acho que a Mãe tinha uma preferência especial pelo filho. É costume, não é? Pois, Édipo, Electra, essas coisas. Ou talvez nada disso. Penso que este acontecimento foi a primeira causa de tudo. O Pai era uma pessoa antipática. Costumava gabar-se: “Podem dizer muito mal de mim, mas nunca conseguirão dizer metade do que eu digo dos outros”. Está a ver o personagem? A máscara do bruto a esconder um bom homem. Como eu ia dizendo, o Pai enchia-a de mimos. Mimos exagerados.
Era uma rapariga muito inteligente. Aprendeu música, piano e canto lírico. Chegou a dar audições de canto. Muito cedo se deixou enfeitiçar pelo cinema. Comprava todas as revistas, lia tudo o que falasse da sétima arte, como na época se dizia. Vestia e penteava-se como as actrizes. Não sendo bonita, tinha o que penso que ainda se chama “glamour”. Jogava ténis. Bem. Era então muito considerada e respeitada, sublinho respeitada, pelos rapazes amigos do grupo de elite que frequentava. Era culta, inteligente, trocista e gostava de exibir a sua superioridade, rebaixando os outros, magoando-os. Sim, podemos dizer, sem ofender a sua memória, que nessas ocasiões era deliberadamente cruel.
Não namorava. “Flirtava”. Era uma coisa nova e ELA adorava “flirtar”. Até às últimas consequências, está a ver, exercia a sedução para mostrar que, se quisesse, tinha a seus pés qualquer homem, mesmo que fosse o namorado de uma amiga. Depois, não ficava com ele, já não lhe interessava. Pois, era uma espécie de jogo. Foi toda a vida assim. Jogou com as pessoas e perdeu. Coitada, como perdeu.
O Pai, que a adorava, como já disse, comprava-lhe em Lisboa vestidos lindos, o último grito da moda, que usava nos bailes. Queria deslumbrar e conseguia. Gostava de perturbar os costumes rígidos da época. Não sei se sabe, mas as Meninas só podiam apresentar-se nos bailes em casas particulares da gente fina ou nas Sociedades bem frequentadas. Quem era a gente fina? Olhe, eu já lhe digo: os médicos, o juiz, as altas patentes militares, os funcionários de Estado com cargos elevados, ah e os ricos, quero dizer, os donos das terras, das lojas, das casas, eu sei lá… E repare que estamos a falar de uma pequena terra de província, na primeira metade do século. Qual? Do século passado, claro. Que confusão para quem já viveu tanto como eu.”
E lá foi, a contadora, prometendo voltar para contar mais sobre ELA. Não voltou. A vida tem destas coisas. Eu vou continuar a pensar na ELA e a inventar o resto da sua atribulada história, em memória de quem ma começou a revelar. Assim nasceu uma história de vida com final aberto, como tantas outras.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Assim nascem as histórias que Licínia Quitério nos conta e sem que fiquemos a saber se apenas ELA é personagem ou se a própria Contadora o é também e se tudo isto se passou no mundo que costumamos considerar real ou no mundo, igualmente real , surgido da capacidade demiúrgica da própria Licínia Quitério…
Um gosto sempre renovado, ler o que escreve.
Muito obrigada pela permanente atenção a estas crónicas.